O dentista indagador

20 abril 2007

Dr. Joaquim.
Um senhor já com seus cabelos bem grisalhos, em vias de se aposentar.
Não tanto por sua vontade, mas pela sua saúde. Com uma pequena isquemia cerebral, já não coordenava muito bem as coisas, sua cabeça já não era a mesma de dois anos atrás.
Mas mantinha seus clientes antigos, que também eram tão ou mais antigos que ele. Os mais jovens já haviam trocado de dentista há tempos. Mas o Dr. Joaquim não se importava muito com isso. Gostava dos bate-papos com seus clientes-amigos. Com os jovens não tinha muito do que falar. Encaminhava-os para uma dentista conhecida, mais paciente com crianças e adolescentes do que ele.
Toca a campainha do consultório.
Dr. Joaquim não tem mais secretária. Poucos pacientes, não teria como manter uma secretária. Nem mesmo necessidade. Ele mesmo fazia questão de ir até a porta, percorrendo um longo corredor e recebê-los pessoalmente, sempre muito bem disposto e feliz por contar com esses poucos e assíduos cidadãos.
– Olá, meu caro Leonardo, entre! . Estava mesmo lhe esperando.
Seu Leonardo era um dos pacientes mais antigos. Em se tratando da idade, também.
Dr. Joaquim estava para lhe preparar uma prótese total superior, uma dentadura, a de cima.
Seu Leonardo havia passado mal num churrasco, foi até o mato vomitar e a dentadura caiu numa moita espessa e lá ficou. Chamou algumas pessoas para ajudá-lo na captura, mas os poucos que se dispuseram a essa tarefa ingrata, não obtiveram sucesso. Talvez tivesse rolado ribanceira abaixo, supôs.

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Então estava ali, sentado na velha cadeira de dentista, preparando-se para preparar uma novinha em folha, a ser feita com esmero pelo nobre doutor. Não via a hora de estar com as duas partes, pois a dificuldade de falar só com a de baixo era gigantesca. Além de murchar a boca, ficar com uma expressão bem ruim. Mas esses tormentos estavam por acabar.
– Vamos lá, Leonardo. Por favor, abra a boca que vou colocar a massa para tirar o molde.
Enquanto seu Leonardo mantinha a boca aberta, olhando vagamente para o teto, verificando algumas teias de aranha nos cantos e uma bela roda de umidade bem em cima de sua cabeça, o Dr. Joaquim manipulava a massa, quase pronta.
Ele já conhecia toda a história da vida do seu paciente, quase sempre fazia as mesmas perguntas. Principalmente agora, com o problema, ficara mais esquecido.
– E então, Leonardo. Quando casa de novo?
Com uma gargalhada, seu Leonardo foi obrigado a fechar a boca e responder novamente que ainda estava casado. Não ficara viúvo ainda, como tinha informado na última consulta.
– Ah, mas é verdade? então estou confundindo as histórias. Creio que é o Alfredo que enviuvou faz alguns meses. Ou alguns anos. Preciso confirmar com ele. Pobre moço.
Com a massa num pequeno pote, pediu ao paciente que abrisse bem a boca, que agora não poderia fechar até que secasse o material.
Seu Leonardo escancarou sua grande boca e o doutor inseriu a massa, modelando com cuidado, toda a região onde iria instalar a prótese.
– Pronto Leonardo. Tenha paciência, que vamos fazer esse molde direitinho, está bem?
Seu Leonardo levantou o braço direito e fez um sinal de ok.
– Mas então, rapaz! estava lembrando da sua filha. Ela estava bem casada, com filhos já. Por que razão foi se divorciar? até agora não acredito. Eles se davam tão bem, parecia um casal feliz, estabilizado. O que houve realmente com eles?
– Arllamma maszgaddava a bablamaa da maradazz gaalagadata !!! – tentou o paciente explicar com muitos gestos para os lados, colocou a mão na cabeça, virou os olhos.
– Não entendi patavina, Leonardo. Ela não gostava mais dele, é isso?
– Na ra aça gahhh asssgacala arrrarrraga !! e mais gestos, nervosos agora. Do olho direito corriam algumas lágrimas. Não de tristeza, mas do esforço.
Enquanto o Dr. Joaquim mantinha três dedos de cada mão, dentro de sua boca, pedia que não movimentasse tanto, pois afrouxaria o molde.
O doutor verificou o molde, colocando um olho bem próximo à boca. Fez-se uns dois minutos de silêncio, quebrado apenas pelo seu rádio a válvula, um Telefunken, que tocava uma música em boa altura, já que seu ouvido também não era mais o mesmo.
– Está quase seca, Leonardo.
Outro gesto de ok, com a mão um tanto trêmula.
Com o desejo de se expressar com a boca entravada daquele jeito, a salivação foi grande e o Dr.Joaquim teve que abandonar uma das mãos para ligar o sugador, colocando-o pendurado do lado esquerdo da boca.
– Está tudo bem agora?
Tentando engolir a saliva excedente, fez um gesto de “mais ou menos”.
Dr. Joaquim respirou fundo, olhou para o relógio cuco da parede. Mais alguns minutos e a massa estaria pronta para ser retirada.
– Não é você que trocou de carro esse ano? parece que te vi com um zerinho, vermelho.
Com o dedo indicador fez um sinal de negação.
– Você não estava com aquele Ford azul que tinha comprado do Manezinho da padaria?
– aaa vãnnn ga gunngã uuuuurrrlallagal lá? !!! – e o sr. Leonardo começou a suar na testa, além das lágrimas que agora corriam dos dois olhos. Não do esforço, mas de raiva.
Com um paninho branco, o doutor enxugou a testa de seu paciente.
– Está calor aqui? eu não estou sentindo. Você está?
– gããnn ! com um gesto nervoso de negativo.
O doutor agora retira suas duas mãos de dentro da boca e vai fechar a torneira da pia que estava aberta. Lá estava o seu Leonardo com a boca aberta, uma placa de massa enorme em sua boca, os olhos acompanhando cada movimento de seu amigo dentista.
De lá da pia, continuava o doutor:
– Esta torneira está com um problema sério. Quando vai fechar ela escapa, e volta a abrir de novo. Vou ter que trocá-la urgente. Você conhece algum encanador competente?
Num suspiro, seu Leonardo fez que não, com a cabeça.
– Não era o seu João aqui da esquina que fazia uns bicos de encanador ? se não me engano era ele sim.
Seu Leonardo deu com os ombros, informando não saber de nada.
– E o seu escritório está indo bem? as coisas estão meio paradas aqui na cidade.
O paciente colocou a mão direita fechada dentro da boca para não movimentá-la, pondo tudo a perder e falou mais umas tantas palavras ininteligíveis como as anteriores. Só que agora, desencostara as costas da cadeira, fazendo uma expressão que indicava um certo desespero com aquela situação. Reencostou-se novamente.
O doutor aproximou-se, pediu a ele que tirasse a mão da boca e olhou o molde.
– Mas você apertou tudo aí, Leonardo. Alargou toda a fôrma. Retirou delicadamente e com um certo ar apreensivo e reprovador, examinou a peça e concluiu:
– Vamos ter que fazer outra! mas você parece um menino! Olhe aqui, apontando para a peça toda deformada.
Seu Leonardo, suando pelas axilas, os olhos avermelhados levantou-se da cadeira, soltou o pano enfiado em sua gola, servindo de babador, colocou o sugador na cadeira.
Olhou seriamente para o doutor atônito.
– Volto amanhã, Joaquim. Volto amanhã. Lembrei-me de um compromisso e já estou bem atrasado” – dirigindo-se à porta de saída a passos largos. Saiu e largou a porta aberta.O doutor, ainda estático, com o molde na mão e o babador na outra ainda pensava, resmungando para si mesmo:
” Tenho a impressão que o Leonardo está precisando se tratar e não é comigo”. – abrindo a tampa do lixo, jogando a peça fora.

2 Respostas to “O dentista indagador”

  1. Luciana Flores said

    Oi Mac, fico orgulhosa quando lembro que sou sua amiga. Você é especial e merece ser feliz. Parabéns pelo seu Blog, como sempre de muito bom gosto!
    Um beijo grande!

  2. Fraulo said

    Dentista indagador? Bacana, carneirim. Por acaso você se inspirou em alguém? Talvez na Diná, néh?

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